31 julho 2008

DOS QUADRINHOS


“Histórias em quadrinhos são a fantasmagórica fascinação daquelas pessoas de papel, paralisadas no tempo, marionetes sem cordões, imóveis, incapazes de ser transportadas para os filmes, cujo encanto está no ritmo e no dinamismo. É um meio radicalmente diferente de agradar aos olhos, um modo único de expressão. O mundo dos quadrinhos pode, em sua generosidade, emprestar roteiros, personagens e histórias para o cinema, mas não seu inexprimível poder secreto de sugestão, que reside na permanência e na imobilidade de uma borboleta num alfinete.”


Federico Fellini

25 julho 2008

INFÂNCIA



Nélson tem 29 anos e, além de otário, é um grande masoquista. Passou a infância morando num carro, no meio do trânsito. Raramente saía, e quando saía as outras criancinhas, desgraçadas, lhe dirigiam olhares de desprezo, viravam-lhe as costas ou atiravam-lhe pedras.

Hoje, crescido, ele mora num avião e vive na janela, com um microscópio nas mãos. Sente saudades de quando era criança e jura que foram os dias mais felizes de sua vida.

(Desenho do fundo do baú)

21 julho 2008

PEDREIRO TIRA RG
E DESCOBRE
QUE JÁ MORREU
O paraibano Aluísio Lacerda de Sá,
de 27 anos, tentou tirar um RG no
Poupatempo de Campinas e foi avisado
de que tinha morrido aos 3 meses.
Jornal "JÁ" - 18/07/08

17 julho 2008

NOITE DE ESTRÉIA




Ernesto Zamparoli suou frio a noite toda e acordou de madrugada, se sentindo meio estranho. Foi ao banheiro, lavou o rosto e encarou no espelho o seu oposto:

- Esse é o homem que eu imaginei ser um dia?

Trepou num cavalete bambo, no meio da sala, e esperou o dia amanhecer. Aquela seria a noite de sua estréia e a necessidade de aprovação lhe causava angústia.

Às oito da manhã ele saiu apressado e correu até o ponto de ônibus. Súbito, se sentiu bem disposto, decidiu não parar e continuou correndo. Trombou com pessoas na calçada e escapou várias vezes de ser atropelado por automóveis e bicicletas. Em dúvida sobre qual caminho devia seguir, foi tomando direções ao acaso.

Quando já anoitecia, se vendo perdido, Zamparoli parou de correr. Só então percebeu, aliviado, que se encontrava diante do prédio em que morava.

Às oito da noite, enquanto todos o aguardavam para a estréia, ele estava diante do espelho, molhado de suor e com um sorriso de satisfação no rosto. O seu oposto o encarava, apontando, orgulhoso:

- Esse é o homem... esse é o homem...


14 julho 2008

PRAZERES


Ceviche com pasta de amendoim
Lagosta tempura
Flan de ananás


Saciados os prazeres do estômago,
uma bela chinesa, do "exército de fadas".

Sugestão: massagem tailandesa.

Aceito sem pestanejar.

É bom para a circulação.

10 julho 2008

SMILE


A queda foi do 13º andar. Com apenas vinte anos repetira o trajeto aéreo do pai rumo à morte.

Mais de cento e cinqüenta pessoas se aglomeram no local, com os olhares dirigidos para o alto, como que aguardando uma reprise do salto.

No meio da multidão, uma figura se destaca. É a de um homem, com o braço esquerdo levantado e a face transtornada.

Um garoto magro, de óculos, está desenhando com o papel bem perto do rosto do cadáver, que traz “smile” na camiseta ensangüentada.

Foi preciso chamar os bombeiros para retirar o corpo, estatelado numa área de difícil acesso.

A coisa toda durou quase três horas. No meio do dia, o corpo já não estava mais lá.

E então, como se alguém tivesse acionado algum botão invisível, tudo voltou ao normal.




09 julho 2008

NAVIO NORUEGUÊS

“Você está atrasado”, resmungou Asdrúbal, abandonando o seu bom humor habitual. E, apontando a caneta para mim: “Isso me estressa, você sabe que eu prezo a pontualidade”.
Tentei botar a culpa no taxista, mas vi que era perda de tempo. Ele voltou a rabiscar os papéis e eu passei os olhos pelo minúsculo e caótico escritório, abarrotado de pinturas desbotadas, livros aos pedaços, estátuas balinesas e muitas fotos espalhadas sobre a mesa, que me chamaram a atenção. Perceb
endo o meu olhar curioso, juntou as fotos e colocou, de maneira desajeitada, num envelope pardo.
Fiquei ali uns vinte minutos, mostrei a carta que ele me pediu e fui liberado. Quando abri a porta e saí, me fotografaram. O flash me assustou. Estava sozinho e fiquei com medo de desmaiar, como das outras vezes, mas só caí e machuquei o joelho. Tanto medo assim tem explicação: há cinco anos, ao abrir a mesma porta, dei de cara com um sujeito grandalhão e com mau-hálito, que me deu uma porrada no peito. Fiquei um tempo inconsciente, e quando recuperei os sentidos, ele me disse: “Aprendi com os bichos a viver em harmonia e a tirar deles só o necessário”. Se mandou e eu fiquei estendido no chão.
No dia seguinte ao meu encontro com Asdrúbal, embarquei num navio norueguês de sismologia. A tripulação passou a viagem toda entoando uma cantiga que acompanhava o ritmo das ondas, o que me deixava ainda mais enjoado.
No terceiro dia começou a nevar.
Vesti minha roupa antitérmica e só então percebi, estarrecido, que tinha esquecido as meias.

07 julho 2008

BANANAS
O macaco observa, curioso, as luvas postas sobre a mesa.
Calçando-as, encara as próprias mãos, intrigado.
E um a um, devora todos os dedos.




05 julho 2008

METÁFORA

Argemiro é o homem mais sábio do pequeno vilarejo. Tem apenas dois livros em casa, mas faz questão de dizer que cada um tem 892 páginas. “E sem ilustração”, faz questão de frisar.
Muitos curiosos o visitam e ele exibe, orgulhoso, os dois catataus: estão dispostos no chão, em lados opostos da sala, e servem de apoio a uma tábua fina e estreita, que divide o cômodo ao meio. Ele explica que usa a tábua para atravessar a sala de um lado a outro, todos os dias, tentando manter o equilíbrio. E que esse ato é uma metáfora de sua própria vida.
Quando lhe pedem detalhes, responde que ele mesmo não é capaz de entender. Mas que a resposta está nos dois livros, que ele, infelizmente, não pode tirar do lugar, senão a metáfora se destrói.

03 julho 2008

O CORAÇÃO DAS RUAS

Laís, filha de um iraniano e de uma inglesa, é vista perambulando todos os dias por aí, com o coração na mão.


Tum... tum...

Alguma coisa do seu mistério, do seu amor desvairado, da sua paixão visceral arde nas ruas.

... tum... tum... tum...

Chegou faz sete anos e um fato inédito aconteceu: a cidade, que tem oito milhões de habitantes, deixou de ser um lugar violento e caótico.

- Laís, minha querida, o que será de nós se você morrer?
- se desespera a velhinha apoiada numa bengala, agarrando-a pelo braço.

Laís procura não se afastar de casa por mais de quinze minutos. Quando volta, retoma a rotina como se não tivesse saído dali.

Um dia, sente o peito apertar e passa a respirar com dificuldade.

... tum...

Sente uma necessidade urgente de sair de casa, não consegue encontrar a chave e se desespera. Arranca os cabelos, arranha as paredes, se contorce e ajoelha.

Então, ouve uma voz que lhe sussurra:

- “O que tiver que acontecer, Laís, acontecerá”.

Seu coração... tum... tum. bate mais forte... tum tum tum cada vez mais acelerado...
tum tum tum tumtumtumtumtumtumtumtumtum...
.............................................................................

... e pára.

...

Caída no chão, Laís.
Em volta, apenas o silêncio.


01 julho 2008

A BORBOLETA E OS OVOS

Durante as obras para sanar uma infiltração na capela, os funcionários e moradores da vila tiveram uma surpresa: encontraram uma porta que, ao ser aberta, os levou a um jardim com centenas de hectares de área verde. No meio dele, um fóssil enorme e bem conservado do que parecia ter sido o ancestral da borboleta. Ao seu lado vários ovos, de cores e tamanhos variados.

Temerosos, quiseram voltar e lacrar a porta novamente. Mas, antes que pudessem dar meia volta, ouviram o bater dos sinos.

- Agora não tem mais volta – disse assustado um morador antigo. O sino não bebe cachaça porque tem a boca para baixo.

-E o ovo porque está cheio – arrematou um outro.

O dia se tornou noite e, debaixo de trovoadas e de uma tempestade como nunca viram igual, começaram a brigar entre eles, com táticas e técnicas impressionantes de combate.

Os pacatos moradores da vila protagonizaram, naquele dia, um dos eventos mais sangrentos da história da humanidade.