14 julho 2009


"Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao
mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os
momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e
longínquo."
FERNANDO PESSOA

04 julho 2009

LIMONADA



A donzela espera, em vão,
a maçã oferecida por Adão,
ou mesmo Eva, por que não?

Mas, o que lhe dão,
para sua desilusão,
é um mero limão...

16 junho 2009

HORÓSCOPO CHINÊS

Corria o ano do macaco e ela veio falar comigo.

O barulho era infernal e só entendi o final da frase:

- ... muito perigoso etecétera e tal.

Sentindo falta de ar dentro de mim, corri pra rua.

Era tarde.
Morreu todo mundo na calçada.

26 maio 2009

FRONTEIRA


No início do século, numa manhã de segunda-feira, duas vacas no pasto ainda molhado pelo orvalho, com capacetes multicoloridos, olham desconfiadas os passaportes que lhes são apresentados.


Amélia e Aurora, duas jovens de vinte e poucos anos se entreolham, com os nervos à flor da pele. Após quatro noites sem dormir, caminhando pela mata fechada, com fome, sono e bolhas nos pés, agora não podem prosseguir. Estão ali há exatos 33 minutos e as vacas, irredutíveis, apenas balançam as cabeças e os rabos,
negando-lhes a passagem.

Aurora se afasta, entra na mata e sai de lá só de biquíni, com um celular em punho. Isso parece ter agradado demais as vacas, pois elas começam a se abraçar e saltitar. Uma delas tira o capacete e fala:

- Por favor, se não for pedir muito, será que vocês podiam entrar na mata e chegar aqui de novo?

Munidas de mapas e bússolas, Amélia e Aurora somem mata adentro. Cruzam morros, vales e rios, enfrentam aranhas e noites de frio e toda espécie de mosquito. Quando regressam, exaustas, encontram as duas vacas no pasto ainda molhado pelo orvalho, que olham desconfiadas os passaportes das duas jovens e balançam as cabeças, negando-lhes a passagem.

O BEBÊ ÓRFÃO


L.H.O.O.Q. era um bebê órfão, abandonado numa passagem subterrânea de Paris.

As pessoas lhe davam queijos e doces e ele bebia muita água para não engordar.

Dirigia estranhas perguntas aos que passavam:

- Se eu fosse um marciano recém-chegado a este planeta, acha que eu conseguiria me fazer passar por um terráqueo?

- Se eu fosse um quebra-cabeça com misturas insólitas, o resultado final seria bom?

Rose, uma prostituta fria e sexy, se apiedou e tentou levá-lo para casa. Quase foi linchada pelos que passavam por lá nessa hora. Todos os que transitavam pelo local se sentiam seguros com a presença do bebê, e a idéia de tirá-lo de lá lhes era inconcebível.

Alguns sentiram pena de Rose e tentaram confortá-la. Mas ela era resignada:

- Não sou masoquista - ela disse - mas o corpo humano foi feito pra isso mesmo, pra sofrer.

Vira e mexe o bebê tinha o seu nome citado nas listas das celebridades mais bonitas do planeta.

Quando completou seis anos, L.H.O.O.Q. disse que queria ser astronauta; quando fez dez, disse que seria bombeiro e aos quatorze dizia que ia ser médico. Mas, ao completar dezessete anos, foi brutalmente assassinado. E todos se esqueceram dele.

25 fevereiro 2009

DDD ( DISCAGEM DIRETA DE DEUS)
(CASOS DA BANCA III)


O mundo anda cheio de malucos. Recebi uma visita inusitada de um vendedor de adesivos, para colar no carro, com frases religiosas. Ele chegou, ofereceu o seu produto "baratinho, se não vender eu compro pelo dobro do preço", e, diante de minha recusa, saiu enfurecido e esbravejou:

- Você deixou de comprar a coisa mais importante do mundo!

Eu, sem entender direito, achei engraçado e esbocei um sorriso. Ele:

- Ainda hoje você vai receber um aviso, viu? Deus vai falar: "Você deixou de comprar do meu filho, você vai ver o que Eu vou fazer..."

Entrou no carro e saiu pisando fundo, me lançando um olhar ameaçador.

Isso foi de manhã. À tarde, tocou o telefone. Ligação a cobrar. Atendi, e após ouvir "a pessoa que chama se identificará", fez-se um silêncio do outro lado da linha. Tentei fazer contato, dizendo "alô" três vezes. Quando fui desligar, uma voz, que não consegui identificar se era de homem ou de mulher, falou tenebrosa e pausadamente:

- M-O-R-R-E-U...! - e desligou.

Confesso que, como nos contos de Poe, senti um arrepio percorrer a espinha.

Depois disso, o telefone tocou, insistentemente, durante muito tempo. Eu só tirava do gancho e colocava de volta.

Me lembrei de "Dick Lorrant is dead...", que o personagem do filme A Estrada Perdida ouve ao atender o interfone.

O aviso enigmático que recebi podia ser um recado de que alguém morrera. Mas eu, depois da visita do vendedor maluco que havia recebido de manhã, entendi como uma ameaça dos céus.

Imagino que os dois casos não tenham relação alguma, mas à noite, antes de dormir, ainda estava intrigado e pensando comigo mesmo:

- É, Deus, tempos difíceis, hein? Ligação a cobrar?

24 janeiro 2009

MEU REI
(CASOS DA BANCA II)

Antônio, um dos taxistas do ponto em frente à banca aprendeu a jogar xadrez comigo. Pegou gosto pela coisa e agora não pára mais. Ensinou a mulher e a filha, para poder jogar em casa, e ainda joga sozinho, no celular.

Quando temos tempo, coloco o meu tabuleiro sobre o balcão da banca, que fica de frente pra rua e disputamos algumas partidas. Acontece dele ser chamado para uma corrida e então o jogo fica suspenso.

As peças do meu jogo se assemelham a figuras reais: o bispo com cara de bispo, a rainha com os trajes de rainha, e assim também o rei.

Numa dessas ocasiões em que o Antônio teve que sair, uma senhora passou, curiosa, encarando as peças do jogo. Não resistiu, voltou e pegou o rei preto na mão e o examinou com atenção. Colocou-o de volta no tabuleiro e me perguntou, com ar de devoção:

- E Santo Antônio, o senhor não tem?




TEMPO DOIDO, SÔ!
(CASOS DA BANCA)

Tenho uma banca de jornais e revistas, onde fico a maior parte do dia. Passam por lá (como em todos os comércios), pessoas dos mais diversos tipos. As pessoas que chegam - comprando ou não - não se furtam a fazer algum tipo de comentário, sejam eles sobre as manchetes dos jornais ou, na maioria dos casos, sobre o clima: "que calor!", "vai chover!", "tempo doido, sô!", e por aí vai. Um dia desses foi um sujeito comprar cartão telefônico e chegou comentando:

- Que bom que choveu, hein?

- Pois é, respondi de forma automática.

- Aqueles tonto da previsão do tempo qué adivinhá, sabê mais do que Deus. Enquanto eles vivia
falando que ia chovê, não chovia, Ele não mandava chuva. Foi só eles pará de falá e Deus falô "-Agora, sim!". E choveu. Ele mandou chuva quando ele quis.

- Nossa! Birrento, Ele, não?

Ele fez que não ouviu, pegou o cartão e se mandou.

Passa um outro, armado de um enorme guarda-chuva:

- Eh, chuvinha boa! Tava precisano, né? Agora, iscuita só, é só chovê uns dois dia e o povo começa reclamá. Num tem jeito. Se tem sol, o povo reclama. Se tem chuva, o povo reclama.

Aí, então, Deus fala: - Eu vô judiá desse povo... E ele judeia mêmo!

22 janeiro 2009

SOMBRA PROJETADA



Há anos o fantasma de uma sombra me persegue.
Não há como fugir, pois a sombra que me persegue é a sombra que eu mesmo projeto.

14 janeiro 2009

AMIGO PASSADO




Meu amigo partiu, revoltando a poeira da rua.
Levou lembranças, bobagens, histórias.
Me impediu até de pensá-lo.
Cinco anos passados, voltou em busca das terras castigadas.
Ele continuava o mesmo.
Mas eu, não.
"No princípio só existia Eu.
E era muito bom!"

DEUS




02 janeiro 2009


"Os diálogos, nos filmes, vem da literatura, a interpretação, do teatro, e a imagem, da fotografia. O que transforma tudo isso em cinema é a montagem."


STANLEY KUBRICK